quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Levem o Soldado Desertor!

à r. targino
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Era impossível esconder o cansaço. As mãos trêmulas já não tinham mais força para manter a porta aberta. Ele sabia que sua hora estava chegando e que o preço era caro demais para todos que se negaram aquela noite. O medo tomava de conta do seu corpo e provocava calafrios na espinha, como se anunciasse o ataque que o levaria ao chão.
Enquanto cai lentamente, consegue enxergar a patente que imortalizaria sua história. 174. Dois dedos no gatilho e o levaram direto para lutar no exército de Deus.


Era uma época difícil na minha vida. Todos os meus problemas se transformavam facilmente em meras ilusões. Fim de tarde. Eu caminhava de volta para casa quando me deparei com aquela tragédia estampada na primeira capa do jornal. Um acidente fatal deixara órfão um membro da alta sociedade no auge de seus 12 anos. Pela primeira vez na vida me dei conta que o mundo pode ser traiçoeiro com qualquer ser, independendo de sua raça, gênero ou classe social. Nunca imaginei que a desgraça pudesse estar tão próxima, aliás, mais do que já estava.
O vento frio cortava a noite e fazia aqueles que procuram um abrigo recorrerem aos pés de Deus. Na escadaria da Candelária, vários amigos tentavam se esconder em sono profundo. Foi naquela noite que o conheci.
Às doze badaladas, um fecho de luz fere a escuridão que escravizava os meninos de Deus. Abro os olhos, ainda atordoada com o que estava acontecendo e vejo o desespero tomando de conta da multidão refugiada sob os olhos celestes. No corre-corre, muitos ficaram com o grito de misericórdia entalado na garganta.
Fiquei estática, não conseguia se quer sair daquele campo de batalha, foi quando ele veio e me abrigou em seus braços.
Lá fora, o pânico se revezava com a dor. Aqui, tudo o que eu escutava era sua voz, ainda infantil clamando por nossa redenção: “Em vós eu me apoiei desde que nasci, desde o seio materno sois meu protetor; em vós eu sempre esperei”.
Aos poucos, o silêncio vai tomando de conta da rua. Em baixo murmuro, o choro cercava os feridos e o desespero da despedida daqueles jovens soldados convocados precocemente a servir o exército dos anjos. E tudo isso pela ação estúpida cometida pelos inimigos de capa preta chefiados pelo Sargento Pimenta, quem deveria guardar e proteges nossos caminhos.

Muito tempo se passou. Tantos anos sem vê-lo e novamente a gente ali, frente a frente ao apocalipse de nossas vidas. Ele estava diferente, parecia suplicar o perdão divino por ter abandonado seu pelotão aquela noite. A todo tempo eu permaneci ao seu lado, tentando interceder por sua vida, mas ele já tinha traçado o seu destino e eu nada mais podia fazer para salvá-lo. Sua hora estava chegando. Depois de disparar dois tiros contra aquela pobre inocente eu soube que era hora de retribuir o favor daquela noite em que ele ficou suplicou por minha vida quando fui uma das convocadas pelo balaço que atingiu o lado esquerdo do meu peito. Eu e ele agora estaríamos lutando lado a lado, recrutando mais inocentes que lutariam pelo exército de Deus.

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